“Uma bandeira, às vezes, coloca uma utopia, mas que indica um problema que é o peso do transporte no bolso do trabalhador.”
“Utopia” foi o termo usado pelo então prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT) — hoje ministro da Fazenda —, para classificar a tarifa zero, política de gratuidade no transporte coletivo.
A declaração foi feita em entrevista à Folha de S.Paulo, em junho de 2013, em meio à onda de protestos deflagrada pelo Movimento Passe Livre (MPL) contra o aumento da passagem de ônibus naquele ano.
Pouco mais de dez anos depois, 675 programas de governo de candidatos às Prefeituras nas eleições de 2024 citam os termos “tarifa zero” ou “passe livre“, segundo levantamento do projeto Vota Aí, uma parceria entre o Centro de Estudos de Opinião Pública da Universidade Estadual de Campinas (Cesop/Unicamp) e o Laboratório de Estudos Eleitorais, de Comunicação Política e Opinião Pública da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Doxa/Uerj).
O número praticamente dobrou em relação a 2016, quando 384 candidatos citavam a gratuidade no transporte entre suas propostas. Em 2020, foram 434 menções.
A presença crescente da tarifa zero na pauta das eleições municipais acompanha o avanço dessa política nos municípios.
Até setembro de 2024, 136 cidades brasileiras já adotavam a tarifa zero, segundo levantamento da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU).
Em 116 delas, a gratuidade no transporte abrange todo o sistema, todos os dias da semana.
Nas outras 20, há tarifa zero em dias específicos, ou para beneficiários, linhas e bairros determinados.
O avanço da tarifa zero no país ganhou fôlego após a pandemia: até 2020, eram 42 cidades com passe livre no Brasil. Desde 2021, outras 94 implementaram a gratuidade — ou seja, o número mais do que triplicou em quatro anos.
Ao menos seis capitais já adotam a política, ainda que de forma parcial: Belo Horizonte (MG), Florianópolis (SC), Maceió (AL), Palmas (TO), São Luís (MA) e São Paulo (SP).
“Para quem dizia que a tarifa zero era algo irrealizável, que era uma proposta de moleque, uma bobagem juvenil de quem só queria fazer baderna, hoje fica claro que essas pessoas estavam erradas”, diz Paique Duques Santarém, antropólogo, urbanista e militante do MPL desde sua fundação.
Proposta avança entre candidatos da direita
Desde 2009, a lei obriga os candidatos ao Executivo municipal a registrarem seus programas de governo no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
O levantamento do projeto Vota Aí foi feito a partir destes documentos, de forma automatizada, com a coleta de informações que constam nos programas.
Nara Salles, coordenadora do projeto, avalia que o crescimento do número de programas que citam a tarifa zero é significativo, principalmente considerando que não são todos os municípios brasileiros que têm transporte coletivo.
Segundo a NTU, no Brasil, 2.703 municípios são atendidos por serviços organizados de transporte público (49% do total de 5.570 municípios).
“O número de citações à tarifa zero nos programas de governo vem aumentando ao longo dos anos pelo destaque que o tema vem recebendo, o que tem a ver com uma demanda da população, mas também com as experiências que têm sido implementadas nos últimos anos”, diz Salles.
A pesquisadora destaca ainda que a proposta era antes mais presente entre candidatos de partidos de esquerda
“Nas eleições de 2016 e 2020, PSOL, PT e PSTU capitalizavam o maior número dessas propostas no Brasil, representando mais de 50% do total”, afirma.
Agora, o tema avança também entre partidos de direita e centro-direita, observa a pesquisadora.
“Em 2024, PT e PSOL continuam sendo os partidos que mais trazem essas propostas em seus programas de governo, mas outros ganham espaço, como PL, MDB, PSD e outros.”
De proposta do PT à crise do transporte
A tarifa zero ou passe livre é uma política pública que prevê o uso do transporte coletivo sem cobrança de tarifa do cidadão.
Nesse modelo, o sistema é financiado pelo orçamento do município, com fontes de recursos que variam, a partir do desenho adotado por cada cidade.
O modelo foi proposto pela primeira vez quando Luiza Erundina, então no PT, estava à frente da Prefeitura de São Paulo (1989-1993).
Quem primeiro teve a ideia foi o engenheiro Lúcio Gregori, à época secretário municipal dos Transportes.
Gregori recorda que a inspiração veio de sua experiência, no início do mandato de Erundina, como secretário de Serviços e Obras, área então responsável pela gestão do lixo da cidade.
“Como todos sabem, quando o lixeiro passa em casa, você não paga nada; simplesmente ele recolhe o lixo, e isso é coberto por uma taxa chamada taxa de lixo ou por uma parte do IPTU que cobre esses gastos”, disse o engenheiro, em entrevista publicada em junho pela Fundação Rosa Luxemburgo.
“Quando me tornei secretário de Transportes, um certo dia, vendo as filas gigantescas e as dificuldades do transporte coletivo, pensei: ‘Por que não fazemos o mesmo que fazemos com a coleta de lixo?”, prosseguiu.
“‘Em vez de pagar cada vez que se entra no transporte coletivo, pagamos uma taxa que cubra os custos.’ Então, quando você usa o transporte coletivo, não paga nada. Dessa ideia básica surge a proposta de fazer o transporte coletivo com tarifa zero.”
Com Erundina governando com minoria na Câmara Municipal e isolada dentro do próprio partido, a proposta não avançou durante sua gestão.
Mais de dez anos depois, em 2005, foi criado o MPL. Após um período defendendo a gratuidade nos transportes apenas para estudantes, o grupo passou a reivindicar a tarifa zero universal e ganhou notoriedade nacional com os protestos de junho de 2013.
Desde então, a proposta se tornou realidade em 136 cidades brasileiras, mas por um motivo talvez surpreendente para uma proposta que surgiu de um governo de esquerda e foi defendida por um movimento social em protestos de rua, muitas vezes duramente reprimidos pela polícia.
A tarifa zero se tornou uma solução para prefeitos e empresários do transporte coletivo, em meio à crise do setor, provocada pela queda no número de passageiros, agravada pela pandemia.
Solução para a perda de passageiros
Daniel Santini, pesquisador da tarifa zero e autor dos livros Sem Catraca: da utopia à realidade da Tarifa Zero (a ser lançado pela editora Autonomia Literária em 28 de setembro) e Passe Livre: as possibilidades da Tarifa Zero contra a Distopia da Uberização (2019), aponta três motivos principais para o avanço desta política nas cidades brasileiras.
O primeiro deles, segundo Santini, é econômico, fruto da queda no número de passageiros em meio ao avanço do transporte individual e da “uberização”, mas também do modelo de financiamento do transporte público na maior parte das cidades brasileiras, baseado na remuneração por passageiro.
“Esse modelo já estava em crise antes da covid, mas, depois dela, a diminuição no número de passageiros se agrava”, diz Santini.
Quando os sistemas começam a perder passageiros, os empresários buscam aumentar o preço da passagem para compensar a perda de receita ou reduzem a frequência dos ônibus para reduzir custos, afirma o pesquisador.
“Quando isso acontece, mais passageiros são perdidos, porque as pessoas não querem andar esmagadas ou não têm dinheiro para pagar os valores mais altos. É um ciclo vicioso, que gera uma espiral de queda [no número de passageiros], o que vai minando a sustentabilidade do transporte público”, aponta Santini.
“Com isso, você começa a ter empresários não só favoráveis ao aumento do subsídio [valor pago pelas prefeituras para financiar parte do sistema de transporte público], como da tarifa zero.”
Isso porque a gratuidade para o cidadão implica no subsídio total da tarifa pelo poder público.
Francisco Christovam, diretor-executivo da NTU, afirma que a ideia de que os empresários de ônibus se beneficiam com a tarifa zero é equivocada.
“Eventualmente, ela beneficia as empresas que estão instaladas no município [que adota tarifa zero], porque essas empresas não têm que fornecer mais o vale-transporte. As empresas de ônibus não se beneficiam, porque o subsídio não é para elas, quem são subsidiados são os passageiros, que têm a possibilidade de usufruir de um serviço público sem a necessidade de pagar tarifa”, argumenta o representante do setor empresarial.
“O custo do transporte tem de ser coberto, seja pelos usuários através do pagamento da tarifa, ou pela Prefeitura, quando ela decide trabalhar com tarifa zero. Então, dizer que tarifa zero beneficia empresa de ônibus é ledo engano, para não dizer, má-fé.”
‘Tarifa zero dá voto’
O segundo fator que explica o avanço da tarifa zero nas cidades é político, diz Santini.
“A tarifa zero é uma política que dá votos, porque ela resulta em muita adesão por parte da população”, observa o pesquisador.
Ele destaca como evidência disso o fato de serem poucas as cidades que reverteram a política depois de sua implementação, mesmo após mudanças de administração.
“Há uma taxa de manutenção superior a 96%. Isso mostra que é uma política de sucesso e muitos políticos — inclusive muitos que não são ligados ao campo mais progressista — perceberam isso.”
Um levantamento feito por Santini para seu novo livro mostra que, das 116 cidades com tarifa zero integral atualmente em vigor, a maioria é governada por partidos de centro-direita, direita e mesmo direita radical.
Apenas uma pequena parcela dos prefeitos e prefeitas que implementaram a política pode ser considerada de esquerda ou centro-esquerda, de acordo com o pesquisador.
Paique Duques Santarém, do MPL, avalia que esses dados refletem o fato de que a maioria das pequenas cidades brasileiras são governadas pela direita.
E são essas as cidades que mais têm implementado a gratuidade no transporte, porque foram as primeiras a sofrer com o colapso financeiro de seus sistemas de transporte, afirma.
Um levantamento do Laboratório de Partidos Políticos e Sistemas Partidários da Universidade Federal do Paraná (UFPR) feito após as eleições municipais de 2020, e citado em reportagem do portal G1, estimou que partidos de direita comandam 82% dos municípios brasileiros desde a última eleição, superando por uma larga margem a esquerda (15%) e o centro (4%).
Já os dados da NTU mostram que mais de 60% dos municípios a adotar tarifa zero têm até 50 mil habitantes e uma frota total de, no máximo, dez ônibus.
“As cidades menores têm uma frota muito pequena, então, é mais fácil para a Prefeitura bancar o custo da prestação do serviço”, diz Francisco Christovam.
Por fim, o terceiro fator citado por Santini para o avanço da tarifa zero nas cidades é o papel da mobilização social das últimas duas décadas em prol da ideia de mobilidade como direito. Paique Santarém compartilha dessa avaliação.
“As lutas sociais criaram progressivamente empecilhos para que o transporte coletivo sanasse sua crise de financiamento por meio de aumento de tarifas, que era a forma histórica que o setor utilizava para resolver suas dificuldades”, defende o militante do MPL.
Impactos sociais
Passada mais de uma década de junho de 2013 e com a explosão no número de cidades com tarifa zero nos últimos quatro anos, já é possível fazer um balanço dos impactos dessa política nas cidades.
Um primeiro efeito observado por gestores municipais é um forte aumento na demanda pelo transporte público após a adoção da gratuidade.
“Aqui em Maricá, [a demanda] cresceu mais de seis vezes”, disse Celso Haddad, presidente da Empresa Pública de Transportes (EPT) de Maricá (RJ), em entrevista à BBC News Brasil em abril de 2023.
“Tínhamos em torno de 15 mil a 20 mil pessoas transportadas diariamente e, hoje, transportamos mais de 120 mil. A tarifa zero é um propulsor do direito de ir e vir, é muito avassaladora a diferença.”
A cidade fluminense iniciou seu projeto de tarifa zero em 2014, durante o mandato de Washington Quaquá (PT) na Prefeitura, financiando o modelo graças a um orçamento turbinado por royalties do petróleo — compensação recebida por municípios pela exploração do óleo em suas águas.
Um segundo impacto apontado por gestores públicos é o aquecimento das economias municipais, com o dinheiro economizado nas passagens sendo destinado ao varejo e serviços locais, resultando em maior arrecadação de impostos para os cofres das cidades. E o maior acesso a serviços de saúde e bens culturais.
“É uma questão muito maior do que a de mobilidade. Existe a questão social, a de geração de recursos, porque, na hora em que eu implantei a tarifa zero, aumentou o gasto no comércio, a arrecadação de ICMS, de ISS”, relatou Josué Ramos (PL), prefeito de Vargem Grande Paulista (SP), que implementou a tarifa zero no município em 2019 devido à necessidade crescente de subsídios para o transporte.
Na cidade, a gratuidade é financiada por meio de um fundo, cujas principais receitas são uma taxa paga pelas empresas locais no lugar do vale-transporte, publicidade nos ônibus, locação de lojas nos terminais e 30% do valor das multas de trânsito.
“Existe também a questão da saúde: tínhamos 30% de pessoas que faltavam à consulta médica e esse índice reduziu, porque as pessoas não tinham dinheiro para ir à consulta. Então ajudou em todas as áreas. A tarifa zero, ao ser debatida, precisa levar em conta tudo isso.”
O desafio das grandes cidades
Embora a tarifa zero esteja avançando nas pequenas e médias cidades, ainda não há nenhuma capital que tenha adotado o modelo de forma integral.
Entre as seis delas que adotam as medidas, há restrições de dias de funcionamento, regiões ou usuários atendidos, segundo a NTU:
- Belo Horizonte: somente nas linhas que atendem vilas e favelas;
- Florianópolis: somente no último domingo de cada mês;
- Maceió: apenas aos domingos;
- Palmas: apenas aos domingos e feriados;
- São Luís: somente para trabalhadores com cartão do Programa Expresso Trabalhador;
- São Paulo: apenas aos domingos.
Entre os desafios para a adoção da tarifa zero nas grandes cidades, está o custo de implantação.
Em São Paulo, por exemplo, o custo de operação do sistema de ônibus municipais é estimado em R$ 12 bilhões, sendo R$ 5 bilhões financiados via subsídio.
Para bancar somente a tarifa zero aos domingos, foram destinados R$ 500 milhões do Orçamento da Prefeitura em 2024.
Para além do custo, há outros entraves, como conseguir atender ao esperado aumento de demanda, que exige investimentos não apenas no aumento de frota, mas em infraestrutura urbana.
Há também desafios na integração com o transporte sobre trilhos, já que metrôs e trens operam em muitas capitais no limite de sua capacidade e costumam ser geridos pelos governos estaduais.
‘Bolsa Família sobre rodas’
Para Paique Santarém, do MPL, apesar da satisfação em ver um número crescente de pessoas conquistando o direito à mobilidade — que foi assegurado no artigo 6º da Constituição através da Emenda Constitucional 90 de 2015 —, ainda há muito a ser feito pela democratização de fato do transporte público no país.
“Não encaramos só como uma conquista, porque consideramos que estamos no meio de um processo de luta”, diz o ativista.
“Estamos ainda distantes da construção de um Sistema Único de Mobilidade no país, em que usuários e trabalhadores do transporte tenham direito de gestão sobre o tema, e com financiamento progressivo [isto é, com contribuição maior da parcela mais rica da população].”
A proposta de criação de um Sistema Único de Mobilidade (SUM), baseada no exemplo do Sistema Único de Saúde (SUS), foi apresentada pela hoje deputada federal Luiza Erundina (PSOL-SP) na PEC 25/2023.
“Essa PEC nacionaliza a tarifa zero, tornando-a uma política pública nacional, financiada por meio de recursos dos municípios, Estados e União. Essa é hoje nossa bandeira”, diz Santarém.
Para Santini, que estudou em seu mestrado a experiência da tarifa zero em Mariana (MG), a nacionalização da política seria equivalente a um “novo Bolsa Família”.
“Cruzando dados do CadÚnico [cadastro de famílias brasileiras em situação de pobreza e extrema pobreza] com o número de viagens georreferenciadas, para identificar onde houve o maior aumento do uso do transporte público [com a tarifa zero em Mariana], fica evidente que houve um aumento expressivo nos bairros mais pobres, em linhas que conectam às regiões centrais, onde estão os equipamentos de saúde, de cultura e os empregos”, diz o pesquisador.
“Então, com a tarifa zero, há uma redução da segregação que marca nossas cidades e um aumento da possibilidade de pessoas pobres alcançarem serviços essenciais. É uma ferramenta clara para redução da desigualdade social, com potencial para ter impacto como um Bolsa Família.”
Por Thais Carrança, na BBC Brasil